segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Remate de ano





Remate de ano



            Final/início de ano é sempre um período angustiante. Talvez pelas contabilizações das perdas, talvez pelas reflexões internas que nessa época assumem uma dimensão maior que no decorrer do ano e toda uma série de razões que esta página não comportaria. Meus amigos também, quase a maioria, ficam angustiados nesta época, o que perturba ainda mais o meu espírito. Há certa desproteção pairando no ar, como se a casca do mundo fosse se romper a qualquer momento e eu pudesse ser atirada em algum abismo particular.

            Se eu tivesse fé, faria uma oração. Mas perdi a dimensão da fé junto aos contornos do raciocínio. O que tenho é medo. Herança de Adão. Ninguém está totalmente liberto desse legado bíblico. O pensamento  ameaça com suas possibilidades e vai nos levando ao limite da existência. Às vezes creio que não sou eu quem está pensando, mas uma voz incansável que brota de um deserto que tenho dentro. Minha dimensão interior é infinita. Tento delimitar, recortar, botar estacas... no entanto é impossível conter o grito de dentro, sobretudo nas ocasiões de términos e reinícios.

Sofro delicadamente as mortes que fui obrigada a aceitar. Mortes grandes e pequenas. Perdi uma prima, perdi um tio, perdi uma amiga. Perdi frases literárias de escritores que partiram para outra realidade e nunca mais voltarão a escrever: João Ubaldo, Rubem Alves, Suassuna, Manoel de Barros, Horacio Ferrer... Perdi um amor, ou, sofri a morte do que poderia ser um amor e não sei se foi, se é, se morreu mesmo, se um dia vai ressuscitar e encher meu corpo novamente de pecados...

Também me angustio com as relações que terminaram sem mortes, que ficaram sem finais, se diluíram no tempo e no espaço sem qualquer desfecho. Esfumaçaram-se em fumaças confusas até um infinito céu tingido de azul medíocre. Esses apocalipses que não aconteceram continuarão a agonizar internamente sacrificando a alegria de muitos dias no ano.

O que não conto, entretanto, é que também matei. Cuidadosamente ou cruelmente... o algoz nunca consegue mensurar os requintes utilizados, fato é que matei esperanças em plena flor, matei afetos, matei desejos, matei possibilidades, vicejos... A gente só consegue viver uma mínima parte do que há dentro, por isso matei muitas de minhas histórias, matei a mim como personagem, esmigalhei o sentido das mãos que se dão, dos corpos que se tocam, das almas que se sentem. Se me arrependi? Algumas vezes sim, outras não, a vida toda é feita dessas emboscadas. Às vezes rimos, às vezes choramos e sempre o medo, esse pó mortal grudado em nossa pele, o qual inalamos, diuturnamente. Colocamos filtros para não amar com força, colocamos filtros para que a emoção não se aprofunde e ainda assim, em algum momento, o tempo para diante de nós e somos obrigados a prender a respiração para que não se torne ofegante. 

Felizmente. O pior dos enganos é a tranquilidade da solidão, ainda que às vezes esta se faz necessária. O que nos salva ainda é o afeto. Exibir a vida vazia em telas de smartphones não vai preencher a carência afetiva. As mensagens por redes sociais não abrigam as emoções de um abraço, nem vão preencher o vazio de uma humanidade deficiente de amor. A perplexidade diante da vida nunca poderá nos deixar. Entra ano, sai ano. As nuvens valsando, o vaivém do mar, a poesia das flores... Que o amor nos alcance sempre com todas as possibilidades de sensações e que possamos enfrentá-lo sem medo, sem máscaras, sem smartphones.



Lucilene Machad




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários