terça-feira, 13 de janeiro de 2015

AMOR DILUÍDO






AMOR DILUÍDO



            A cena de amor mais bonita que eu conheço é a do meu pai abotoando a sandália da minha mãe. Uma cena que se repete desde que eu era criança até  hoje. Um momento de leve embevecimento em que quase me atrevo a confessar que amo profundamente os pequenos gestos de ternura e também quis ter um amor que fechasse o zíper do meu vestido, abrisse a porta do carro, abotoasse minha sandália, delicadamente, como se fora a metonímia de uma longa caminhada.

            Mas não me atrevo, o mundo ficou demasiado moderno e tais homens foram suplantados por uma política de disputa, política de igualdade  ou se foram em fuga para algum país sem nome. Por isso, silencio um silêncio conhecido. Um silêncio que tenta afastar a navalha da desesperança da garganta. Tarde demais, as redes dos triviais egoísmos já me incluíram no mundo fugaz dos práticos, dos objetivos, resolutos, capazes de fechar a porta da memória e seguir adiante, sem sofrer. Embora me vista e revista de ternura, sou parte de uma sociedade hedonista para qual só importa o prazer e afasta de si as possibilidades de dores. Fomos diplomados na universidade do esquecimento e, às vezes, capazes de nos esvaziarmos tanto quanto uma camisa seca no varal.

            Já não somos tão felizes, também não sei se importa. Há tantas outras coisas para se fazer que a paixão já não é essencial. Culpa? O amor nunca me deixou calçar sandálias, sempre andei descalça sobre pedras e espinhos, e, a cada passo me afastava um pouco mais do que eu gostaria de alcançar. Tentei outros movimentos: elástico, mola, agulha, trepidação ... e nada. De modo que não posso permitir que a sombra da culpa venha a embaçar minha inteligência.

            Eu gostaria de fazer um elogio ao amor romântico, ao amor que abotoa sandálias, ao amor forte, amor cego, amor que corre riscos, amor ousado, comprometido... mas já ninguém quer se apaixonar, ninguém quer correr o risco de uma saudade sem fim, de uma tristeza sem nome, um desequilíbrio fermentado, uma dor a corroer o coração como um câncer, a vida hoje é outra. O amor intenso foi banalizado, diluído em experimentos, ensaios, tentativas, a fim de se obter uma compatibilidade que “valha a pena”. A palavra “amor” foi destituída da responsabilidade de amar. Amor pode ser fazer sexo, por exemplo. Amor pode ser usado em qualquer outra relação, sem o constrangimento de não ser real. Porque o amor não precisa ser real. Zygmunt Bauman fala em “Amor líquido” para tentar explicar as atuais relações amorosas. Devorei seu livro na tentativa de me salvar da angústia opressora da desesperança. Mas a filosofia não nos salva. Empurra-nos para um deserto redondo onde as palavras ficam girando dentro e fora de nós. Segundo ele, ser digno de amor é algo que só o outro pode classificar, nosso papel é aceitar essa classificação. Daí a vitrine imensa que o mundo se transformou. Todos, inconscientemente, se apresentando da melhor maneira possível para obterem nota favorável em suas classificações. A maioria sem amor próprio. Mas como podemos ter amor próprio se o amor nos é negado?

            Nomeio as coisas que me faltam. Nomeio várias vezes e vejo que tenho um patrimônio de palavras sinônimas. Quase todas estão relacionadas ao amor, ou à falta dele. Vez por outra vou riscando as que julgo impossíveis. Não é uma atitude fácil. Desce um ar gélido para o estômago, é como se nevasse em algum ponto dentro de mim. A vida vai me tomando o nome das coisas, vai apagando as referências e sei que aquele espaço será um deserto de sal onde estará enterrada a memória das palavras.

            Por hora, ainda me emociono com a cena da sandália. Amanhã estarei no silêncio inchado dos sós, dos que se obrigaram a escolher o amor líquido, sem assombros, sem confrontos, com hora marcada para acontecer, sem culpa, sem dores, sem futuro.

Lucilene Machado

5 comentários:

  1. Luma...

    Qual mortal, homem ou mulher, não gostaria que as gentilezas amorosas fossem duradouras? Todos gostamos de ser acarinhados, mas... como manter o brilho, se tudo vai ficando fosco, desgastado, se os laços vão se dissolvendo, num processo quase natural das relações...(?) Menos a sua poesia Luma... Por isto, permita que os amores acabem e se renovem, que os zipers pareçam enferrujados e nenhum homem tenha paciência de abrir ou fechar, que ninguém se curve amorosamente para enlaçar um sandália, mas que a sua poesia harmoniosa e gentil acaricie nossas almas cansadas, e nos faça reviver este tempo de alegrias amorosas que um dia vivemos por uma simples generosidade, mas com a magia de nos transformar em pessoas melhores, mais amadas e apaixonadas...Seu texto me fez sentir saudade de um amor assim gentil, onde o olhar era uma caricia, um diálogo cheio de poesia sem nenhuma palavra escrita. Há quanto tempo não escrevemos em guardanapos bebendo um vinho qualquer, num bar qualquer, por que a safra do amor que se vivia era melhor do que qualquer vinho de um barril empoeirado. (?) Luma, contribua sempre para que nossas almas não esfriem, nem congelem... Mantenhas-nos aquecidos, apaixonados... mesmo sabendo que um dia vamos nos ver como os pés assim, inchados, sem ninguém para abotoar sandálias, chinelos sem cor, mas com o coração umedecidos de saudades, por um dia termos sido assim, tão apaixonados... e muito felizes...! Para quem este tempo já chegou ou vai demorar, ainda há tempo para muitas gentilezas... Eu estava refletindo e cheguei a conclusão de que me falta ajudar no ziper, ainda bem que você abriu o ziper dos meus olhos...
    Um abraço.
    Laercio... ^^

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    1. Obrigada "Laercio". Bom ler as palavras de um homem sensível. O amor romântico é um produto de séculos sobre séculos de influência cristã e como diz Fernando Pessoa é um caminho de desilusão. O que eu tento é descrever as novas concepções, novas formações e que os modelos se renovem, mas que a poesia nunca deixe de existir. Obrigada pelo carinho.

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  2. Parabéns pelo texto gostoso, notei um verdadeiro “upgrade” na parte da metonímia e enfim no todo.
    Desta vez me pôs na rede e me embalou, em sua característica mas marcante e encantadora que descubro agora, um parágrafo o romantismo acelera, a caneta arrisca, noutro se resguarda novamente e quase posso ver riscos cortando a ideia original.
    Ainda há uma busca no abrigo da filosofia para equilibrar e completar o jogo, como a se dizer: aqui 7 x 1 não!!!
    Amo o conflito que cria com maestria e torço como fã para que um dia numa crônica ou não, o desenlace se de em franco desequilíbrio onde hoje só sua caneta (ar)risca.
    Como registro, acho que não apenas eu, adoraria ter uma mãe escrevendo assim... Bravo Professora Lucilene! :)

    Melina

    "É quando as palavras se esgotam que a música começa." (Heinrich Heine)

    https://www.youtube.com/watch?v=bmqj-V-ivG0

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    1. Melina-linda, sempre me encanta a sua leitura. Sim, exatamente. O amor está em conflito. Os modelos antigos já não se adaptam a nós, mas não deixamos de desejá-los, a psicologia interior se choca com o mundo exterior, as palavras faladas nos traem, não damos conta, parece que a convivência tem o poder de matar o amor e isso nos maltrata, nos deixa impotentes, porque nossos pais conseguiram e nós não? queremos e na prática derrapamos em nossos próprios argumentos. A palavra amor já não comporta a mesma carga semântica e isso é conflitante tanto na literatura como na vida.
      Ehehehe creio também, que não apenas eu, gostaria de ter uma filha assim.

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  3. Um trocadilho não entre mãe e filha, mas entre duas poetas! LINDAS DE SE LER E VER!

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Comentários