terça-feira, 8 de setembro de 2015


Mulheres com poderes nos olhos

            Vi uma mulher passando delineador enquanto esperava no semáforo, uma imagem que ficou grudada na parede do meu cérebro. É certo que isso não é um fato corriqueiro, provavelmente nunca mais verei essa cena que o acaso amarrou dentro de um instante, daí minha necessidade em contar. Embora seja esta uma história muito simples, a palavra tem sua potência e, posso dizer que embaixo da superfície desse fato há uma série de outros acontecimentos pululando que talvez me exigissem muitas páginas para descrevê-los adequadamente. A realidade concreta tem muitos matizes.
            Mas a mulher do semáforo me deixou pensativa por uma semana. Ser mulher é mesmo algo excêntrico, somos muito peculiares e muito parecidas. Naquele momento, o pronome “eu” perdeu toda sua rigidez de filho único e voou na condição de “nós”. Nós mulheres somos capazes de nos maquiar no retrovisor do automóvel e isso é uma particularidade atribuída à condição feminina. Também somente à mulher é atribuída essa necessidade de embelezar os olhos. Que o digam as mulheres mulçumanas, que cobrem todo o rosto e pescoço, maquiam os olhos com delineadores escuros, e neles colocam toda a força da sedução. È provável que o nosso olhar ocidental não manifeste a mesma eficácia, mas não podemos negar que os olhos são a parte mais expressiva do corpo humano, com ou sem delineador.
            Particularmente, creio que toda mulher deveria usar delineador, algum dia, como um truque para  desgarrar-se de si. Esvaziar-se do olhar ideológico e se apropriar de outro que lhe recubra de fantasias. Um delineador não deve ser usado só. Ele precisa de certas combinações como brilho nos lábios, meias de seda, saltos e outros complementos que fazem parte do quebra-cabeça que compõe os diários secretos de nossas emoções, ou de nossa paranoia existencial. Mulheres de olhos desenhados parecem mais determinadas, ainda que tenham vocação irresistível para os abismos. Cada metáfora pode ser uma existência inteira, vivem-se todas as coisas, sem viver nenhuma. Tudo pode ser revisto, reposto, reinventado. Mulheres destemidas sabem que as palavras não têm significado estável. Pode-se devorar ou ser devorada nesse exercício de exalar hormônios. Os traços escuros circundando o viés da vista e a luz a rebentar todos os contornos.
            Às vezes é muito prazeroso ser mulher. Gozar dessas pequenas coisas que nos cabem. Contudo é preciso ter cuidado, nunca sabemos onde os olhos podem chegar, nem qual realidade tentará emparedá-lo. É incrível a sensação de estar disfarçada de si mesma, o olhar sem fundo delineando uma procissão de palavras ambíguas e sedutoras. Entretanto, na duração das coisas habita sua revelação. Não se pode abusar por muito tempo do mesmo disfarce. Sabemos que na segunda-feira temos de retirar o véu de nossas caras maquiladas e ir à luta porque coube a nós desatar da vida a totalidade de suas amarras. Assim, vamos escrevendo o nosso destino sem aparar as pontas, sem perder os minutos que escapam no trânsito, enfrentando os monstros que se levantam para amedrontar mulheres que têm poder nos olhos.

Lucilene Machado 

Um comentário:

  1. Ser mulher é mesmo usar um disfarce de si mesma todos os dias, até nas segundas-feiras. Aprendemos isso desde muito pequenas. E isso é uma delícia.
    ob: eu também passo rímel quando estou parada na sinaleira, e também passo creme, as vezes base, lápis e batom. Parabéns por mais um texto. abraço grande

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