O mar, Deus e as mulheres
Acordo e vejo o mar lambendo o horizonte. Um mar imenso
se oferecendo a mim desde as suas profundezas. É certo que não temos muita
intimidade, ainda tenho receio dessa profundidade desmedida e traiçoeira. Uma
sedução silenciosa que me molha por dentro, ainda que eu mantenha essa
distância de vidraça. Creio que o mar é um porta-voz impessoal de Deus. Ora
calmo e sereno, ora enfurecido. Uma dualidade que me amedronta. Quando criança,
tive muito medo de Deus, qualquer transgressão geraria castigo e castigo era
uma palavra esmagadora, cujo significado era totalmente desconhecido. O castigo
poderia ser imediato, o que não deixa de ser a forma mais positiva de punição, o
contrário seria esperar lentamente a hora de ele chegar, e isso não previa
lugar, nem hora, apenas que fatalmente viria. Construí um Deus brutalmente
humano, carregado de vingança, a partir da regra dos outros, religião dos outros,
do pensamento dos outros. Um Deus que se movia por repetições de palavras e
muita insistência. Uma lógica cartesiana, a mesma com a qual interpretamos o
mar e seus abismos.
Segundo Clarice, o mar é a mais ininteligível das
existências não humanas e a mulher a mais ininteligível dos seres humanos. Uma
mulher e o mar é o encontro de dois mistérios. Uma mulher, o mar e Deus são
três mistérios e uma coragem secreta. A coragem de ser fêmea e correr todos os
riscos, inclusive o de ser castigada. Um perigo antigo que sobrevém a qualquer
hora, às vezes pela madrugada quando dormem os homens, dormem as crianças, dormem
as coisas um sono fácil e profundo.
Eu não tenho sono fácil, nem profundo. Os pensamentos
fazem espirais pela escuridão do quarto, depois escorrem pelo corpo e se transformam
em sonhos, muitos sonhos que alcançam as largas manhãs azuis. O dia começa
devagar e cúmplice. Gente de todas as idades caminha pela areia. Mulheres com
seus bebês, mulheres com grandes barrigas, mulheres paradas olhando o mar,
enquanto a vida passa por esse corredor estreito como um vento ligeiro. A poesia
se arma em minha defesa, como um escudo. A fugacidade das coisas nos deixa
melancólico, é preciso amor para perdurar. Amo de duas maneiras, pensando e
vivendo. Mas hoje estou desencantada do amor, só hoje, porque amanhã me
esquecerei dos espinhos que ele deixa na carne e me lançarei nesse mar
traiçoeiro com toda a agudez dos meus instintos. Porque só o amor me faz sentir
honesta e sensata. Só o amor me faz sentir o sangue queimar embaixo da pele,
sem culpa. Mas há sempre uma causa e uma consequência. Se não sabemos para onde
vamos, fatalmente cairemos num abismo, e o amor se torna um vazio indecifrável
em que as certezas já não têm nenhuma utilidade. O amor tem também seu
dualismo, é o que se espera e o que não se espera, encantamento e decepção.
A imprevisível meteorologia da paixão cobre o sol a
qualquer momento e já não sabemos em qual estação estamos. Só o mar e a ausência anunciando, talvez, o velho castigo
de Deus.
Lucilene Machado
Luma...
ResponderExcluirComo é bom ler você... e sentir esta empatia de sentimentos das profundezas onde nossas almas se escondem, vivem o tempo inteiro, de dia ou de noite. Sua leitura me torna mais semelhante, e passo a ver meus conflitos e dores com poesia, o que torna tudo muito suave, bonito, apaixonante, menos complicado e doloroso, até instantes assim, de olhos abertos na madrugada da vida... Um abraço. Gostei muito...!!!! Laercio.. ^^
Obrigada, querido.Gosto muito de suas leituras, me ajudam a dar rumo à minha escrita. Venha sempre. Abraços.
ResponderExcluirObrigada, querido.Gosto muito de suas leituras, me ajudam a dar rumo à minha escrita. Venha sempre. Abraços.
ResponderExcluirSoy ateo, aunque eso no implica la carencia de cierta mística existencial. Hermosa posición filosófica expuesta en un bello texto, cuidadosamente, estéticamente elaborado. Lo bello no está tanto en las ideas sino en tu crear con palabras un acontecimiento bello.
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