sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

BIOGRAFIA DE AMORES (texto XI)








BIOGRAFIA DE AMORES
Texto XI


          Desci do trem pensando em como seria a vida depois dele. Arrastei a mala, muito mais pesada que antes, sobre a superfície íngreme do meu destino. Segui devagar, não queria que o ranger das rodas denunciasse qualquer som mórbido. As marcas de tristeza não devem aparecer para não infectar os que merecem estar felizes a nossa volta. Chutei uma pedra imaginária como uma forma de desabafo, como uma forma de dizer “ó vida, e agora?” O frio me agarrava pelas costas golpeando os meus ossos. Lembrei-me dos dias anteriores. Lembrei-me da sala entulhada de imagens, da lareira e do fogo a nos vigiar. Éramos dois. Quase um. Nossas poucas palavras jaziam entre cinzas e chamas, e o frio com seu vulto surdo-mudo nos fazia sombra. Vez por outra ele atiçava as labaredas com as mãos desnudas. Um gesto que me excitava. Sua língua sorvia o calor ardente da lenha para me aquecer os seios. Nossos corpos eram nossas almas. Nossos sonhos e peles se misturavam. Toques e aconchegos. Víamos por dentro. Viver, amar e ser amado. A vida passa por essa gradação e eu obedeço. Nunca me disseram que eu deveria ser amada para amar. Aprendi só a me envolver com a paixão, muito mais que com a história. Daí que a paixão acontece fora do script, aquém de seu tempo determinado e me deixa com o espírito cheio de interjeições, mas não maldigo os desacertos. Gosto de perambular, sem defesa, pela rota do imprevisível. Algo não aconselhável, só ouso porque sou capaz de suportar as agruras posteriores.
          A casa dista cinco quadras da estação. Arrasto a mala como quem arrasta um planeta. Vários faróis se alternando em verde e vermelho como se alternassem também as interjeições: “siga! Olhe! Cuidado! Aproveite! há esperança, há amor... fuja! Nenhum médico poderá salvá-la! Você será afogada no rio do tempo sem nenhuma gota d’água, etc., etc.”
          A sensação causou-me vertigem. Meus olhos resvalavam nas paredes antigas dos prédios. As ruas estavam molhadas e me pareciam perturbadoras àquela hora da noite. Tudo parece perturbador ou fabuloso quando o coração está inquieto. A cidade me olhava como um homem olha uma mulher e ia soltando seus ruídos. Sibilinos como o som do vento nos vitrais, durante as noites de insônia. Senti-me forte cidadã dessa selva de pedra cada vez mais gélida. Oh Deus, também eu? Creio na imortalidade da palavra. A palavra dentro de sua esfera. No princípio era o verbo e o verbo era Deus. Mas para o amor não há manuais. Algumas palavras já foram vendidas como pão e peixe. Fortalecem, ajudam a resistir. O amor jamais me esgota quando vivido em palavras, mas os abraços me arrancam o delírio, me arrancam as ilusões. O corpo fica dolorido quando a palavra voa. Recordo-me de tantas coisas que volto a ter medo.
          Desci a rua pensando nisso. Atravessei o parque, um cão saltou à minha frente, louco com o frio que lhe atravessava a carne. O focinho pontiagudo parecia aspirar o melhor do mundo, como se o melhor do mundo estivesse à altura de seu nariz. Os cachorros não têm antecedentes históricos, não sabem que Homero não existe mais e que a civilização, que se deu a duras penas, parece estar regredindo. Somos outra vez bárbaros. E o estado, como vociferou um antigo filósofo, é o mais frio dos monstros. Não sou ingênua para contrariar essa opinião. Não discuto, acompanho os acontecimentos. Eu e o cão não temos futuro amoroso, mas estamos neste texto a contemplar essa coisa nenhuma que é a cidade vazia de sentimentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários