sábado, 9 de janeiro de 2010

MULHERES BIODEGRADÁVEIS










          Eu pertenço a uma geração de mulheres biodegradáveis (ou biodesagradáveis?), que se espalham, se dissolvem e desaparecem sem deixar menores partículas. Mulheres que habitam um mapa superaquecido e se decompõem facilmente por não oferecerem resistência. Seus cadáveres são expostos em praça pública e seus microorganismos avaliados cientificamente. Arrancam pecados de seus estômagos, ironia de seus rins, enquanto suas almas atravessam paredes e janelas. Faço parte dessa classe de mulheres que apagam suas histórias para não poluir a natureza e suplantam a vingança para não destruir o planeta com uma exacerbada energia negativa. Mulheres que inventam rios e chuvas. Cruzam a água e chegam molhadas na hora em que os débeis não estão preparados para recebê-las. 

          Sou dessas mulheres etéreas, quase voláteis. Costumo escapar por entre os dedos da eternidade enquanto a vida respira cotidianamente em ritmos de procissão. Mulher que se inventa em destinos gozosos, impossíveis, fazendo-se terna e selvagem. Procura homens que disputem sua inteligência, entretanto os homens estão ocupados em suas infinitas memórias sexuais e seus sonhos freudianos. Presos em suas falsas muralhas, cobertas de ciprestes que espinham, mas são vulneráveis ao opor resistências. 
          Foi por esse ponto frágil que adentrei várias vezes ao mundo masculino, dissolvendo-me em todas as tentativas. Com Ed também foi assim. Ele tinha a essência do vento oceânico em sua respiração. No início achei que não devia. Suas mãos manejavam sonhos jurássicos e seus olhos liam livros cujas letras caíam de suas folhas. E eu, carregada com essa consciência ecológica, habituada a ser poema sem livro, pensamento sem recordações, roteiro de personagens ímpares sem cheiro e sem rastros, fui contornando a situação. 
          Ele era quase feliz, embora estivesse abandonado, embora estivesse intoxicado com seus próprios pensamentos. Como assinalou Joyce, estava feliz, perto do coração selvagem da vida. Não buscava amores, mas não relutou mediante minhas tentativas que poderiam levá-lo a algum paraíso esquecido, ou ao nada. 
          O mundo da palavra é uma possibilidade infinita de aventura. Foi por aqui que iniciamos. Percorremos a cidade por cima, como duas gaivotas perdidas em terra estranha. O fio condutor me pertencia por condição literária, mas nunca deixei de ouvi-lo. Pescado vivo dentro de sua realidade, era um personagem real caminhando por vias oblíquas, bem próximas das relações verdadeiras e consolidadas que podem dormir ao som do mar ou à luz do sol, ao meio dia. Nos perdemos nos bosques distantes só para ter a surpresa de nos reencontrarmos. Dias e noites de intensa paixão. Mas logo veio o impacto do instante agudo, sem nada dentro. Um silêncio que me traía, que me expunha, que queria estar comigo. No destino das mulheres há sempre um absurdo. Às vezes a vida toda é um absurdo. Ed não suportou o meu silêncio. Tomou decisões dramáticas, sérias e descabidas. Aparentou ferocidade ao precipitar o curso das coisas, tentou salvar uma de minhas partículas, minha primeira célula, como se isso fosse possível. Nada. Do todo, restou minha presença espectral e o estranho bater de um coração desconhecido que pertence ao narrador (ou narradora?) que é pessoa lá de fora, obrigada a ser neutra, a ser comum, a ser normal ainda que só se revele aos sensíveis e loucos. Devo acrescentar ainda que este é um conto de ficção, qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência, principalmente se for com a sua, Ed.

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